Zika Vírus, Microcefalia e a atuação da Estatística

CONRE-3 entrevista Prof. Edson Zangiacomi Martinez. Estatístico atuante na área da saúde, docente oferece explicações sobre as análises estatísticas e os impactos causados à população

Prof. Edson Martinez Um dos assuntos de maior destaque no início do ano é a epidemia de Zika Vírus e sua relação com o aumento nos casos de microcefalia. A hipótese foi transformada em fato nas publicações da imprensa, respaldada por especialistas da área da saúde e baseada em análises estatísticas. Mais do que isso, com bases nesses números, surgiram divergências entre os profissionais que afirmam e os que preferem não arriscar comentários sobre a relação entre o mosquito e a doença. Como as informações têm base no que a estatística apresenta, o CONRE-3 conversa com o Prof. Edson Zangiacomi Martinez, livre docente e Diretor do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP/Ribeirão Preto).

Nesta conversa, Martinez, que é estatístico com mestrado em Estatística e doutorado em Ciências Médicas, fala sobre os relatos divulgados e explica a diferença entre associação e causalidade. Ainda defende grandes estudos prospectivos com equipes interdisciplinares para evidências mais robustas e fala sobre o papel da imprensa e da população frente à ansiedade vivida recentemente.

Alguns profissionais da saúde dizem que ainda é muito cedo para confirmar a relação entre Zika Virus e Microcefalia. Outros, ao contrário, afirmam com 100% de certeza que Zika causa microcefalia. As notícias são baseadas em dados estatísticos. Se dizem que os números não mentem, o que está acontecendo para haver essa divergência de informação? Segundo as estatísticas, há ou não essa relação e por quê?

Em 2014, a febre chikungunya foi notificada pela primeira vez em nosso país, e em 2015, surgiram os primeiros casos de infecção pelo vírus zika. Ao mesmo tempo em que os casos de zika eram notificados no Brasil, observava-se um expressivo aumento dos casos de microcefalia em recém-nascidos. Portanto, não há dúvidas que, ao menos neste período, a infecção pelo vírus zika tem alguma associação com a ocorrência de microcefalia em nosso país, o que se infere pela ocorrência simultânea de muitas notificações destas doenças nas mesmas áreas geográficas. Entretanto, é importante lembrar que associação e causalidade são conceitos diferentes. Quando dois eventos em saúde tendem a ocorrer simultaneamente, nós dizemos que eles se associam. Isso não necessariamente significa que um é consequência do outro, mas eles podem ser consequentes das mesmas causas e exposições.

Os epidemiologistas utilizam uma conhecida estratégia para se julgar uma associação entre dois eventos como uma causalidade, atribuída ao cientista britânico Austin Bradford Hill. Por esta estratégia, a relação entre exposição e doença precisa ser repetidamente observada em vários estudos, ter uma explicação plausível e ser coerente com o conhecimento atual sobre a doença, enquanto a exposição deve anteceder a infecção e, quando modificada em intensidade, produzir algum efeito sobre o padrão da doença. Ou seja, apenas números e estatísticas não são suficientes para concluir se a infecção pelo vírus zika causa ou não a microcefalia. Outros ingredientes são essenciais, e as pesquisas que estão sendo conduzidas atualmente, embora importantes, ainda não trouxeram respostas afirmativas ou negativas a esta questão. Em conclusão, se os números não mentem, eles sozinhos também não dizem nada.

 

Onde está o problema? Nos dados coletados, na interpretação dos dados ou na forma de divulgação da imprensa? Por quê?

O problema não está nos dados ou em sua interpretação. Os primeiros casos de infecção pelo vírus zika no Brasil foram notificados em 2015, e ainda não tivemos tempo suficiente para obter resultados consistentes de pesquisas que fornecessem explicações plausíveis para a associação entre a doença e a microcefalia. O problema também não está na forma de divulgação pela imprensa, dado que a mídia procura retransmitir as informações que recebe dos meios científicos. Ainda que a mídia possa, em alguns casos, reproduzir estas informações com vieses, isso não seria suficiente para justificar as dúvidas que existem sobre a relação entre a zika e a microcefalia. Para termos evidências robustas, precisamos de grandes estudos prospectivos, com coletas de dados em vários centros urbanos, em que um grande número de mulheres com infeção e outro grande número de mulheres sem infecção pelo vírus zika seriam acompanhadas durante a gestação. Ao final do estudo, a incidência de casos de bebês com microcefalia seria comparada entre estes dois grupos. Estes estudos devem ser desenvolvidos e acompanhados por equipes interdisciplinares, envolvendo geneticistas, neurologistas, epidemiologistas, patologistas, obstetras, bioestatísticos e outros profissionais.

O Jornal Hoje, da TV Globo, em 15/02/2016, culpa a falta de dados estatísticos em matéria com título: “Aumento da microcefalia pode ser problema das estatísticas brasileiras”. O que é preciso fazer para que as informações incorretas supostamente baseadas em dados estatísticos sejam esclarecidas?

A matéria veiculada pela TV Globo não diz respeito à estatística como ciência, mas trata as estatísticas em saúde, ou seja, as informações que são obtidas a partir das notificações dos casos para se produzir bancos de dados que, uma vez organizados, podem ajudar a decifrar alguma relação entre a infecção pelo vírus zika e a microcefalia. Portanto, é importante esclarecer que o problema reportado não é consequente de condução inadequada ou interpretação equivocada de análises estatísticas, mas trata a obtenção de informações que são vitais para a manutenção de bancos de dados que descrevem a dinâmica das duas morbidades em nosso território. A matéria trata a possibilidade de haver subnotificações dos casos de microcefalia antes da epidemia de zika, e isso poderia, em algum senso, atenuar a magnitude da associação entre estas doenças. As subnotificações sempre estiveram presentes em todos os sistemas de informação em saúde brasileiros. A cada ano, estes sistemas são analisados por profissionais de saúde e há sempre esforços para que eles se tornem mais confiáveis.

O que a população deve levar em consideração ao interpretar esses dados em matérias veiculadas pela imprensa?

É inevitável que se estabeleça um clima de ansiedade perante o desconhecimento das consequências da infecção pelo vírus zika à saúde da população, principalmente entre as pessoas que estão prestes a ter um filho. Em muitos centros urbanos, observamos um notável avanço da doença, tal que um grande número de novos casos surge a cada dia. Entretanto, muitas novas pesquisas vêm também sendo divulgadas pelos periódicos científicos, e esperamos que em breve nós tenhamos conhecimentos mais adequados. Diante das divergências das informações divulgadas, torna-se necessário que a população procure prevenir-se das três morbidades causadas por mosquitos do gênero Aedes, a dengue, a chikungunya e a zika. Tal prevenção envolve manter os quintais limpos, desobstruir as calhas dos telhados, não manter em casa recipientes capazes de acumular água, e outras medidas que a mídia e os profissionais de saúde vêm insistentemente divulgando.

 

CONRE-3 entrevista Prof. Edson Zangiacomi Martinez